Médio Juruá

Exemplo de mobilização coletiva para conservação

Médio Juruá

Exemplo de mobilização coletiva para conservação

Vida, coragem e futuro no Médio Juruá: onde a sustentabilidade é concebida pelas mãos coletivas

Por: Raissa Testahy

De 5 a 6 dias de barco, a mais de 700 km da capital do Amazonas, encontramos Carauari, município mãe do território Médio Juruá – uma área de floresta tropical conservada e riquíssima em biodiversidade.

O território é banhado pelo rio Juruá, um dos principais afluentes do rio Amazonas, que nasce no Peru. Lá encontramos duas unidades de conservação, a Resex e a RDS. Ambas fruto de muita luta de classe, conscientização e, sobretudo, união da população ribeirinha e dos povos indígenas. Para contar essa história, vamos voltar para os anos 80.  

Assim como no Sertão da Bahia (contada na história da Coopercuc), os Movimentos de Educação de Base (MEB) ligados à Igreja Católica tiveram papel essencial no esclarecimento do que acontecia por lá — e tudo começou a mudar.  

Nos anos 70, os moradores não tinham liberdade para plantar e pescar e eram obrigados a adquirir alimentos nos barracões administrados pelos ditos “patrões”, com quem tinham dívidas intermináveis. Através dos encontros e das aulas ministradas pelo MEB, muitos entenderam que estavam sendo explorados e, assim, as lideranças nasceram como forma de resistência.  

Uma delas foi Manoel Cunha, seringueiro e o último de sua geração a viver nesse regime de semiescravidão. Ele percebeu que, unidos, eles poderiam transformar aquele sistema de trabalho que só beneficiava poucos e que precisavam sair “das garras dos patrões”. Com muita luta pelo empoderamento comunitário, represálias e desafios, a comunidade constatou que precisavam se apropriar do território.  

Manoel Cunha Foto: Bruno Kelly

Foi só então que, em 1997, criou-se a Reserva Extrativista (Resex) do Médio Juruá, na região central do Amazonas, onde habitam mais de 2,6 mil pessoas. Manoel, que é gestor do ICMBio na Resex desde 2016, afirma com orgulho que nenhuma gota de sangue foi derramada durante o processo. Os patrões deixaram a área com a força da organização comunitária e os moradores finalmente se apropriaram da gestão do território. 

Porém, a área protegida não incluía a totalidade do território Médio Juruá, apenas a margem esquerda do rio. Após muitas articulações, em 2005 foi criada a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Uacari (RDS), unidade de conservação estadual, localizada à margem direita das águas do Juruá.  

“Eu digo que sou cogestor, porque todos atuam com a gestão. Tudo que é feito é em conjunto. Única coisa que divide é o rio. Os problemas são os mesmos. Os parentes são os mesmos. Os dois [gestores] atuam juntos (Resex e RDS). A gente entende que se não tiver parceria a gente não vai pra canto nenhum”, ressalta Gilberto Olavo, gestor da RDS Uacari há mais de 13 anos. 

Gilberto Olavo Foto: Bruno Kelly

“A coisa mais valiosa que temos no Médio Juruá é a organização comunitária”

Após articulações e lutas dos seringueiros, as comunidades perceberam que existia a necessidade de se criar estratégias para comercializar a produção das comunidades de maneira justa e valorizando os seus modos de vida. 

Nesse sentido, foi criada a ASPROC (Associação dos Produtores Rurais de Carauari), como organização que pudesse apoiar os produtores rurais do município na geração de renda e garantia de direitos. 

Promovendo cidadania para as comunidades ribeirinhas, a associação atua no território há mais de 30 anos e representa aproximadamente 800 famílias de 55 comunidades ribeirinhas.   

Segundo o site da organização, a ASPROC, através de uma gestão participativa com a organização social das comunidades, obtém-se um desenvolvimento econômico e social da região, possibilitando a realização da cogestão dos recursos naturais de grande importância sociocultural por meio do desenvolvimento de cadeias de valor da sociobiodiversidade, como é o caso do manejo sustentável do pirarucu e da cadeia da borracha. 

Nesse arranjo socioeconômico, outras organizações também contribuem com o manejo das oleaginosas, do açaí e de outras espécies da região, como o caso da AMARU, CODAEMJ, AMECSARA, ASMAMJ e AMAB.

Donos da terra, da floresta, do rio

Os Deni estão entre os povos indígenas da região dos rios Juruá e Purus que também sofreram com a exploração da borracha na região. O povo esperou por décadas até terem os direitos territoriais assegurados. Em 2003, conseguiram a demarcação oficial das terras.  

Em 2006 foi criada a ASPODEX (Associação do Povo Deni do Rio Xeruã), que representa aproximadamente 1000 indígenas moradores de cinco aldeias localizadas no município de Itamarati, no Médio Juruá (AM).  

A associação trabalha pela garantia dos direitos assegurados aos povos indígenas, como o acesso aos serviços públicos de saúde e educação adequados às suas realidades socioculturais. Em parceria com as lideranças das aldeias, também coordena atividades comunitárias de proteção territorial, conservação ambiental e geração de renda, como o manejo e comercialização sustentável do pirarucu e de sementes oleaginosas. 

“A ASPODEX é uma das implementadoras do Programa Território Médio Juruá (PTMJ). O povo Deni tem uma participação cada vez mais forte com as comunidades ribeirinhas para fortalecimento das cadeias produtivas e para a gestão territorial”, comenta Ronnayana Silva, coordenadora de Programas Territoriais na Sitawi.  

Os últimos anos foram marcados por retrocessos e ataques aos povos da floresta no Brasil. O estudo “Terra Arrasada”, divulgado em 2023, apontou que a “fragilidade institucional” se agravou durante o governo Bolsonaro, levando a recordes de destruição da floresta amazônica provocada pelo garimpo ilegal.  

Em 2022, balsas de garimpo também chegaram ao Médio Juruá. “Foi a primeira vez na história que uma balsa de garimpo entrou na região do rio Juruá. Foram momentos difíceis, mas não paramos de lutar”, afirma Manoel.   

A chegada do PTMJ

Em 2014, a Natura e a Coca-Cola se juntaram a diversas associações, órgãos governamentais de proteção ambiental e lideranças de diversas comunidades ribeirinhas do Médio Juruá em um processo integrado para a criação de um plano de desenvolvimento territorial, com base em um diagnóstico participativo somado a resultados do Índice de Progresso Social (IPS Comunidade). 

Nesse cenário, a Sitawi foi convidada para coordenar o desenvolvimento de uma proposta para ser apresentada à Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID).

Foi assim, que em 2017, nasceu o Programa Território Médio Juruá (PTMJ). Durante a 1ª fase do programa, entre 2017 e 2021, a iniciativa elaborou um planejamento de ações para a região, que envolveu uma ampla base de stakeholders para ampliar a escala e o impacto das iniciativas de conservação e de desenvolvimento nas dimensões social, ambiental e econômica. Confira abaixo os parceiros de cada fase:   

Agora o programa agora está no 3º ano de sua 2ª fase e impacta positivamente a população da região, promovendo mobilização social e geração de renda.  

Foi o primeiro programa onde se trabalhou essas cadeias produtivas dentro do conjunto, de forma transversal e sincronizada. E o resultado foi assustador de bom. Graças a Deus, né? A gente conseguiu avançar demais e ainda trouxe o que chamamos de social”, destaca Manoel.  

O social destacado por Manoel é o trabalho com empoderamento dos jovens, o fortalecimento da organização comunitária e o empoderamento das mulheres em todos os processos produtivos. Ronna Silva destaca que todo o trabalho do PTMJ é alinhado com as organizações locais: “minha atuação considera, de maneira muito horizontal, a perspectiva dos parceiros locais para a valorização dos seus modos de vida e o fortalecimento do território”.  

O PTMJ trouxe transformação e explosão”, ressalta Lucinete Viana, analista de Gestão de Filantropia da Sitawi, o PTMJ revolucionou a maneira de se viver no Médio Juruá.

Lucinete morava na reserva do Médio Juruá e com 13 anos precisou se mudar para Carauari com toda a família para estudar, pois na reserva não existia escola de ensino médio. Ela mora em Carauari até hoje e se formou em administração, trabalhando na Sitawi desde 2018, diretamente com o PTMJ.    

Emocionada, ela diz que percebeu uma comunidade mais empoderada e segura (em especial as mulheres), mais efetividade na comunicação por conta do avanço de tecnologia na região e a conservação de ecossistemas que estavam sendo devastados (como os lagos dos pirarucus e as praias dos quelônios).   

Ser mulher no Médio Juruá

Até aqui essa trajetória de luta e perseverança pelo território foi contada e realizada por homens.

“A história do Médio Juruá é muito bonita, mas não dá visibilidade às mulheres. Enquanto os homens se reuniam para traçar como poderíamos viver melhor no território, as mulheres estavam dentro de casa cuidando da família. Consideram que as mulheres não fazem parte dessa história, mas estavam fazendo uma parte muito importante de cuidar da família para que os homens pudessem se encontrar”, ressalta Rosangela Cunha, presidenta da ASMAMJ (Associação de Mulheres Agroextrativistas do Médio Juruá). 

A ASMAMJ foi criada em 2004, quando as mulheres se uniram e decidiram se organizar enquanto grupo para se empoderar e crescer. As principais atividades da associação incluem ações para bem estar e saúde da mulher, capacitações para desenvolvimento de habilidades, e fortalecimento dos polos produtivos de bionegócios da região

As ações para trazer renda são chamadas de polos de produção – biocosméticos, biojoias com escamas, óleo de andiroba e óleo essencial.  

Em parceria com o instituto juruá,  GIZ e Natura, a ASMAMJ publicou em 2022 o estudo intitulado Diagnóstico de Gênero e Juventude nas cadeias de Valor do Médio Juruá que apresenta as particularidades de homens, mulheres e da juventude nas cadeias de valor locais.

Rosângela afirma que existe uma diferença enorme entre as gerações passadas e as atuais, com o empoderamento entre as mulheres na região e a desconstrução do machismo. “Eu tenho muito orgulho da minha cultura e da minha ancestralidade, mas não reproduzo o machismo que sempre existiu na minha família”, ressalta.

Rosângela Cunha - presidenta da ASMAMJ

Segundo a presidenta da associação, a chegada do PTMJ teve um impacto muito positivo durante a reativação da ASMAMJ, pois possibilitou que elas fizessem os polos de produção, o que alavancou a geração de renda.

Assista ao documentário Seiva Bruta

Para o futuro, Rosangela deseja que a ASMAMJ cresça enquanto associação e alcance benefícios que impactam as mulheres diretamente. “Eu desejo que as mulheres tenham autonomia financeira, que realizem os seus sonhos, que sejam objetivas no que querem”, destaca.

Juventude, presente!

Juventude do Médio Juruá - Foto: Bruno Kelly

“Falar de futuro emociona, antes a gente não conseguia falar de futuro. Quem imaginava que o filho do ribeirinho fosse fazer uma faculdade dentro da unidade de conservação? Que a gente continue sempre com esse olhar que é possível viver com a harmonia da natureza de forma sustentável”. Raimundo Cunha, presidente da AMECSARA (Associação dos Moradores Extrativistas da Comunidade São Raimundo). 

A Associação surgiu em 2006 a partir da necessidade que a comunidade São Raimundo viu em se organizar para reivindicar os seus direitos. A AMECSARA atua em projetos voltados para o apoio do fortalecimento de cadeias produtivas não madeireira, conservação ambiental, organização comunitária, contribuindo para fortalecer as ações de melhoria da qualidade ambiental, a geração de renda e, principalmente, a organização social dos povos e comunidades da região.

Raiumundo Cunha é presidente da AMECSARA há 8 anos e começou no movimento social bem jovem, com 11 anos de idade. Além de ser brigadista pelo ICMBIO e formado como agente ambiental voluntário, atuando com conscientização em todo o Médio Juruá, junto aos gestores das unidades de conservação no combate à pesca ilegal. 

Raimundo Cunha - presidente da AMECSARA

Assim que se tornou presidente, viu que a juventude não tinha uma associação que a representasse. Então trouxe, além da representação dos moradores, o protagonismo juvenil, a educação ambiental e a conservação dos quelônios.  

Tanto Manoel quanto Gilberto, gestores das unidades de conservação, desejam que os jovens continuem se empoderando e que amanhã e depois estejam ocupando mais espaços. “Comunidades são fábricas de lideranças. Estamos trabalhando essa introdução forte dos jovens nas lideranças. Amanhã são eles que estão aqui. Eles que estão na presidência da ASPROC, na gestão da Resex”, ressalta Manoel. 

A partir de iniciativas como a dos Jovens Protagonistas e Jovens Multiplicadores, a juventude realmente se interessou pelo Médio Juruá e em estar presente nesses espaços de discussão.  

Outra ação é o “Jovem que educa Jovem”, onde transforma a visão dos jovens em relação ao trabalho nas escolas do território. Dando aulas sobre criação das unidades de conservação e a história do Médio Juruá, para que as crianças já cresçam com a sensibilidade para a proteção das florestas.

Ribeirinhos e quelônios: todos pelas tartarugas da Amazônia

Há 40 anos existe o monitoramento dos quelônios feito pelas comunidades no Médio Juruá. Os comunitários guardam os ovos para protegê-los de predadores e caçadores mal-intencionados. Mas o que são esses quelônios que tanto falamos? 

Todos os anos, centenas de moradores das duas unidades de conservação se reúnem na Gincana Ecológica para a soltura dos quelônios. O trabalho é realizado entre os meses de junho e novembro , quando enquanto as as fêmeas desovam  às margens do rio Juruá. Todo esse período é acompanhado pelos comunitários e por monitores, que realizam a contagem e a proteção das covas e dos ovos a cada ano, além da vigia dos tabuleiros instalados nas praias, campinas e barrancos da região. 

Os tabuleiros ficam espalhados pelas duas Unidades de Conservação, sendo 14 na RDS Uacari, de gestão da Sema, e cinco na Resex, de gestão do governo federal, por meio do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio)

Muitas mãos

Para fortalecer o diálogo entre as diferentes organizações e gerar mais maiores conquistas para a população do Médio Juruá, foi criado, em 2010, o Fórum Território Médio Juruá (Fórum TMJ). Os resultados alcançados pela conservação de base comunitária são fruto de um trabalho coletivo.  

“Temos cooperação forte nas assembleias e no Forúm. Nós temos uma forma conjunta de realizar as coisas: não disputamos espaços, a gente trabalha em conjunto, por isso as coisas dão certo”, ressalta Raiumundo, presidente da AMECSARA.

Conectando
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