Por Natália Flach – Empiricus
Ela entrou correndo no restaurante e se enfiou debaixo da minha mesa. De vez em quando, saia do esconderijo para olhar ao redor. Perguntei de quem estava se escondendo. “Da moça”, apontou. A moça era a garçonete. Em seguida, sussurrou “tô com fome, tia, me dá comida?”. Ela não tinha sequer cinco anos.
Isso aconteceu na quarta-feira da semana passada, em um bairro nobre de São Paulo. Mas, na verdade, acontece todos os dias e em todos os lugares. Mudam o endereço, o rosto e a abordagem, só não muda a carência que aflige o Brasil desde sempre.
De acordo com dados mais recentes do Banco Mundial, existem 9,5 milhões de pessoas vivendo em situação de extrema pobreza no país. Daí que a sétima maior economia do mundo aparece no vergonhoso 46a lugar do Índice de Progresso Social, que mede o avanço de 50 países a partir de três indicadores: necessidades humanas, bem-estar e oportunidades…
Por que estou falando de desigualdade no informativo do Clube? Primeiro, porque uma criança de blusinha rosa me lembrou que iniciamos uma trajetória de construção de riqueza em um país onde as disparidades socioeconômicas são exorbitantes. Segundo, porque é possível investir em negócios com impacto socioambiental sem abrir mão do retorno financeiro.
Ou seja, dá para fazer o bem e ainda ganhar dinheiro com isso.
Esse tipo de investimento (de impacto) está dentro de uma categoria mais ampla, conhecida como finanças sociais. Ela se caracteriza por quatro pilares:
1) alocação de recursos (privados e públicos) com compromisso de gerar resultados sociais ou ambientais positivos,
2) uso de instrumentos financeiros que permitem resolver problemas socioambientais (investimento de impacto, microcrédito, crowdfunding e contratos de impacto social),
3) empresas e ONGs que solucionam problemas sociais com sustentabilidade financeira,
4) mensuração, monitoramento e reportes de resultados sociais e financeiros
Por mais que o tema não apareça com frequência em jornais e revistas, envolve cifras relevantes. Para se ter ideia, somente no ano passado, fundos globais investiram US$ 15,2 bilhões em 7.551 negócios de impacto, e a expectativa é que haja um aumento de 16% nesse volume em 2016, de acordo com a pesquisa Global Impact Investing Network. Ao todo, os fundos com esse propósito detêm US$ 77,4 bilhões em ativos sob gestão.
“O capital sai dos países desenvolvidos – onde as gestoras têm suas sedes – e segue em direção aos mercados emergentes”, diz o relatório. Mais especificamente, é alocado em iniciativas ligadas à agricultura, saúde, construção civil, energia, educação e até em microfinanças.
Mas o trabalho dos gestores não se resume a fazer aportes, eles também precisam captar recursos. Por isso, recorrem a family offices, multimilionários (ultra high net Worth individuals) e até fundações, que, no ano passado, injetaram US$ 6,7 bilhões nos fundos de impacto. A expectativa é que eles praticamente dobrem essa cifra em 2016, de olho na rentabilidade e nos resultados socioambientais.
Nos mercados desenvolvidos, o retorno financeiro dos fundos que investem em dívida foi de 5,4%, em 2015, enquanto nos emergentes alcançou 8,6%, segundo o Global Impact Investing Network. Já os ganhos daqueles que aplicam em ações foram bem maiores: 9,5% nos países mais avançados e 15,1% nos em desenvolvimento. “Oitenta e nove por cento dos gestores disseram que a performance financeira veio em linha ou foi melhor do que as expectativas, e 99% afirmaram que o impacto social ficou dentro do esperado ou superou as projeções”, diz o relatório.
Brasil
Apesar de o tema ser ainda mais recente no Brasil, finanças sociais e negócios de impacto movimentaram R$ 13 bilhões em 2014, segundo estudo mais recente da Deloitte sobre o assunto, realizado em parceria com a Força Tarefa (grupo de 20 organizações que se reuniu para constituir um movimento em prol da matéria). A meta é alcançar R$ 50 bilhões até 2020.
Nesse sentido, os fundos de investimento de impacto têm papel importante. De 2003 a 2013, eles captaram R$ 382,4 milhões e a expectativa era alcançar até 2015 R$ 706,5 milhões. Já o retorno financeiro esperado varia de 10% a 15%, segundo o estudo.
Os principais atores do mercado brasileiro de finanças sociais são o fundo holandês Oikcredit, a International Finance Corporation (IFC), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a Sitawi Finanças do Bem, a MOV Investimentos, além da Vox Capital e da LGT Venture Philantropy.
Como participar
No momento, a Vox Capital está captando recursos para o seu segundo fundo de investimento em participações (FIP), e o objetivo é levantar algo entre R$ 100 milhões e R$ 120 milhões. O desembolso mínimo, por investidor, é de R$ 1 milhão. Muito dinheiro, né? Mas é possível comprar cotas de outros fundos que vão investir no FIP da Vox. Aí, o tíquete de entrada cai consideravelmente.
Segundo Daniel Izzo, presidente da Vox, os recursos captados serão destinados a negócios de impacto dos setores de educação, saúde e serviços financeiros. “O mapeamento de oportunidades é constante, por isso já temos conversas adiantadas com uma empresa ligada à educação”, afirma.
Só para ficar claro: o FIP da Vox é um venture capital, ou seja, é um fundo que investe em empresas que já possuem certa receita, mas ainda estão em processo de crescimento. “O risco é alto, até por isso perseguimos um retorno de 4% acima da inflação”, diz.
Já a Sitawi tem outro foco. É uma organização da sociedade civil de interesse público (OSCIP) que gere sete fundos filantrópicos, faz aporte de doações, mede resultados e, em breve, deverá lançar o primeiro contrato de impacto social do Brasil (conhecido lá fora por Social Impact Bond). Esse instrumento financeiro (de nome comprido) é um contrato que prevê que o governo pague determinada quantia aos investidores caso as metas de impacto social acordadas sejam devidamente cumpridas. A sua principal função, portanto, é solucionar problemas sociais ou melhorar a qualidade de serviços prestados às camadas mais frágeis da população.
O que a Sitawi fez, na prática, foi firmar um acordo com o governo do Ceará para reduzir a hospitalização de pacientes crônicos. “A ideia é que os pacientes possam ser atendidos parte do tempo em casa, onde se sentem mais confortáveis”, explica Leonardo Letelier, presidente da Sitawi. Para isso, a OSCIP está levantando custos e procurando especialistas para ver qual é a melhor forma de fazer isso – e a mais em conta.
“Digamos que o governo se proponha a pagar R$ 10 milhões pelo serviço e a gente consiga provê-lo por R$ 8 milhões. A diferença de R$ 2 milhões será paga ao investidor que acreditou desde o início na iniciativa e comprou os contratos”, explica.
Enquanto esse projeto do Ceará não sai do papel, é possível se juntar ao ex-presidente do Banco Central, Armínio Fraga, e fazer doações para a Sitawi. No ano passado, a OSCIP bateu a marca de R$ 6,7 milhões alocados no setor social, sendo que, deste total, R$ 3 milhões foram destinados a empréstimos socioambientais, que apoiaram 179 mil pessoas. “Cada R$ 1 doado permitiu alocação de R$ 4,90 no setor social”, afirma. É a multiplicação do bem.
Fim do almoço
Como era previsto, a garçonete tentou expulsar a criança, dizendo para ela voltar dali a duas horas, quando o restaurante estivesse fechado. Eu respondi que duas horas é muito tempo para uma criança com fome. O dono do estabelecimento teve a mesma atitude. Fiz, então, uma quentinha para ela, que foi embora feliz. O dono pediu desculpas e não cobrou a marmita. Também fui embora feliz.