Casa Chama
Acolhimento para pessoas transvestigêneres
Casa Chama
Acolhimento para pessoas transvestigêneres
Acolhimento, artes e sobre(vivência)
Por: Raissa Testahy
“São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados.”
O texto acima, do artigo 6 retirado da Constituição Federal 1988, destaca que o Estado Democrático deveria assegurar tais direitos a cada cidadã e cidadão brasileiro. No entanto, grande parte da população brasileira não tem pelo menos um dos direitos garantidos. Quando falamos de pessoas transgênero, os dados são ainda mais alarmantes.
De acordo com um levantamento de 2014, realizado pelo Projeto Além do Arco-íris, da ONG Afro Reggae, 72% da população trans brasileira não havia concluído o ensino médio e 56% sequer havia terminado o fundamental.
Isso tem explicação: boa parte das travestis e pessoas trans são marginalizadas pela própria família e são expulsas de casa, em média, aos 13 anos, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
Além disso, a discriminação, a falta de acolhimento e a ausência de políticas públicas na área da saúde afastam pessoas trans e travestis do atendimento necessário. A recusa do nome social ou pela ausência de contato são algumas das barreiras que essas pessoas encontram.
A expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil é de apenas 35 anos, menos da metade da população cisgênera, que é de 76, segundo a Antra. Isso ressalta que a existência de organizações como a Casa Chama é essencial para a re(existência) das pessoas trans no país, da colocação delas no mercado de trabalho e da socialização.
A Casa Chama
Promovendo dignidade e autonomia para pessoas transvestigênere desde 2018, a Casa Chama é um espaço de convívio seguro e afetuoso, que foi fundado por Matuzza Sankofa e Digg Franco durante o período de aumento de discursos racistas, misóginos e LGBTfóbicos no país.

Digg nos conta que as iniciativas da organização foram mudando ao longo do tempo. “No início, era um lugar mais feminista, de compartilhamento de arte. Depois iniciamos algumas atividades de grupos políticos, autodefesa, residência artística, etc. Com a chegada das eleições e muitos conflitos com pessoas LGBTQIAPN+, foi aberto um chamado e um grupo de WhatsApp onde as pessoas começaram a se reunir”, comenta.

A importância desse espaço de socialização transformou a vida de muitas pessoas. Na antiga sede, no bairro de Perdizes, em São Paulo, a casa chegou a acolher 27 pessoas trans em situação de vulnerabilidade por falta de moradia. Foi lá, também, que Digg, além de acolher, foi acolhido. Ele ressalta que todo apoio e socialização foram fundamentais em sua trajetória.
“Temos os primeiros desenhos da Casa Chama e a gente percebe que não sabia várias coisas. Tinham questões que a gente já queria abordar, como moradia, saúde, psicológico, a gente não entendia que essas três coisas pertenciam a uma categoria chamada psicossocial, o que temos hoje”, relata Digg.
Educação, saúde e (sobre)vida
O trabalho da organização, hoje, é dividido em cinco categorias de serviços:
Iniciativas transformadoras
Em 2022, no interior do estado de São Paulo, em Araraquara, a equipe da Casa Chama montou e criou um modelo de Casa de Acolhimento para pessoas LGBTQIAPN+. “Foi uma gestão em conjunto com a prefeitura de Araraquara e 17 pessoas trans foram contratadas para o trabalho. Imagina quanto impacto causamos nas pessoas acolhidas? A ideia é dar prolongamento às nossas vidas”, ressalta Digg.
O espaço tem capacidade para abrigar 12 pessoas e ofereceu atendimento psicológico e social aos moradores. O local também conta com um serviço técnico de 24 horas com uma equipe de cuidadores sociais.

Em 2023 a Casa promove o 2° Congresso de Saúde Trans, que já conta com o apoio da Embaixada da Alemanha. A primeira edição foi realizada em 2021 e teve profissionais de diversas especialidades, abordando os assuntos mais relevantes para pessoas transvestigêneres e teve como maior objetivo a conscientização, especialização e sensibilização de profissionais (cis/aliados) da saúde.

A Casa Chama acredita no poder da cultura como uma ferramenta política de denúncia e inclusão de corpos trans em todos os espaços. O núcleo de cultura conta com diversos pockets shows, exposições, produções audiovisuais e etc. Segundo Digg, na organização é prioritário contratar só pessoas trans e/ou mulheres pretas, o que resultou ao longo dos anos em mais de 600 remunerações.
Recentemente, a organização apresentou a exposição “TRANS____borda/o olhar opositivo na arte trans”. Treze artistas trans de diversos estados do Brasil trouxeram sua arte que relata a luta da população trans por direitos e espaços negados ao longo da história.
No mar da pandemia da Covid-19, não estamos todos no mesmo barco
Se a vulnerabilidade social compulsória afeta imensamente a população trans, no cenário da pandemia de Covid-19 a situação se agravou. Em 2020, a Casa Chama precisou ocupar temporariamente um lugar assistencialista.
Além da distribuição de centenas de cestas básicas (incluindo as cestas dignas), fizeram a distribuição de kits de proteção, higiene e redução de danos. Também deram continuidade a outras frentes, como atendimento psicológico, serviço jurídico e auxílio moradia.
Acolhimento de pessoas trans o ano inteiro, não só em junho

Os maiores desafios encontrados por Digg e Matuzza são de capacitação de sucessores para gestão e apoio a longo prazo para garantia da estabilidade financeira da organização.
“Tentamos todas as oportunidades que a gente tem, abrimos caminhos por todos os lados. Não temos apoio a longo prazo. Os apoios são pontuais, a maioria em junho (Mês da Consciência LGBTQIAPN+). Atiramos sementes para todos os lados, onde o vento bater, estamos preparados”, declara.

Matuzza Sankofa e Digg Franco, fundadores da Casa Chama
Após viver como “nômades”, agora a sede da Casa Chama tem novo endereço. No bairro Bixiga, em São Paulo, o casarão contou com o apoio da Trident para uma parte das obras de reforma.
“A gente trabalhou demais para chegar aonde a gente tá. A gente ainda não tem sede própria (vivem de aluguel). A gente também não enxerga, ainda, pessoas para substituir a gente. Existem muitos desafios de longevidade”, declara Digg.
Foi assim que, pensando em mecanismos inovadores, a história da Sitawi se encontrou com a da Casa Chama. Em parceria com a Endowments do Brasil, foi criado o primeiro Fundo Patrimonial voltado à causa LGBTQIAPN+ no país.
O Fundo Patrimonial Trans – Casa Chama tem como finalidade contribuir com a sustentabilidade financeira da organização através dos rendimentos de recursos investidos, vindo de doações. Todo esse rendimento será reinvestido e a organização poderá utilizar em projetos que continuem acolhendo milhares de pessoas trans.
A gestora do fundo é a Endowments do Brasil, a primeira organização Gestora de Fundos Patrimoniais (OGFP) multi-causas, aderente à lei 13.800/19.
“Esse mecanismo inovador favorece a Casa Chama ao diminuir os custos. Sem essa estrutura, a Casa Chama seria obrigada a criar sua própria OGFP, por exemplo, que só seria economicamente viável com cerca de R$ 20 milhões (para o rendimento ser suficiente para pagar a estrutura da OGFP e ainda conseguir direcionar recursos para a causa)”, ressalta Leonardo Letelier, CEO da Sitawi e diretor executivo da Endowments do Brasil.
“O Fundo é uma grande possibilidade, pois é uma garantia de alocar recursos para viver da renda dele e não passar pelos altos e baixos que correm risco de fechar a casa. Queremos garantir que, mesmo quando não estivermos mais aqui, ela ainda realize o seu papel de acolher e ajudar a população trans”, ressalta Digg.

Quando questionado sobre o futuro, ele ressalta que a demanda mais séria é a da moradia. “Mulheres trans mais velhas, com uma vida muito difícil, estão envelhecendo e estão em precariedade. Precisamos de moradia para essas pessoas. Penso em um projeto como Minha Casa Minha Vida Trans”, declara.