Elas lideram
Mulheres e a caatinga
Elas lideram
Mulheres e a caatinga
Mais do que sabor, histórias:
Conheça a cooperativa que ressignifica a relação entre as mulheres e a Caatinga
Por: Raissa Testahy
Levando a Caatinga para todas as regiões do Brasil — e para alguns países do mundo — encontramos a Coopercuc, localizada no sertão da Bahia. Mas para contar a história desta cooperativa precisamos voltar alguns anos atrás.
Trabalhar com or(ação)
Nos anos 80, os movimentos sociais oriundos das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) tiveram papel essencial na luta pela transformação da sociedade. No Sertão da Bahia, não foi diferente.

Nos municípios de Canudos, Uauá e Curaçá, três freiras católicas canadenses, Monique Fortier, Martha D’aoust e Jaqueline Aubly, começaram a diagnosticar os problemas da região e identificaram três principais necessidades: água, terra e geração de renda.
Até então, o governo federal trabalhava para combater a seca na Caatinga e, para essas religiosas, era necessário coexistir com o semiárido — não o combater. Assim, elas, juntamente com a população, identificaram as principais potências do local e implementaram tecnologias sociais na região.
Uma delas foi a captação da chuva para armazenamento da água, com a construção de cisternas subterrâneas. Além disso, houve incentivo para que os produtores participassem ativamente das discussões para construções de leis da regularização fundiária da terra. Também implementaram técnicas para melhorar a criação dos animais — a principal fonte de renda na época era a ovinocaprinocultura (criação de ovinos e caprinos para a produção de carne, leite, couro e lã).
“As freiras disseram que não queriam só trabalhar com a oração. Queriam trabalhar também com a ação. Junto com esses movimentos sociais, os produtores se tornaram um grupo organizado e fortalecido e todos os problemas vivenciados na comunidade foram sendo amenizados com a disseminação de conhecimento”, declara uma das sócias fundadoras da Coopercuc, Jussara Dantas.

Da esquerda para direita: freiras Monique Fortier, Grâce Leblanc, Marta D' Aoust e Jaqueline Aubry, em Uauá, em1987 — Foto: Arquivo pessoal/Jussara Dantas
Em 1997, antes de partirem para outra missão, as freiras organizaram a chegada do Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (Irpaa) à região, uma ONG que atua com técnicas de manejo apropriadas à vegetação e ao clima do semiárido.
“É possível viver aqui”
É seco na Caatinga, mas também é verde. Muitas espécies nativas se adaptaram à escassez de água e uma delas é o umbu. O umbuzeiro é definido pelo escritor Euclides da Cunha como “árvore sagrada do sertão”. Já para Dailson Andrade, coordenador comercial da Coopercuc, o umbu traduz todos os sertanejos.
A relação do umbu com a Coopercuc começou em 1986, quando vinte mulheres se reuniram para preparar, artesanalmente, produtos do fruto. Posteriormente criou-se o grupo Unidos do Sertão, que agregava cerca de 30 comunidades, envolvendo mais de 100 pessoas. A produção do grupo era levada para comercializar nas feiras dos municípios e o município de Uauá/BA recebeu a primeira barraca de venda dos produtos. A partir dessa barraquinha foram convidados para feiras, exposições e eventos.
O trabalho dessas famílias recebeu um aporte financeiro em 1999, com a aprovação do Programa de Convivência com o Semiárido (PROCUC). O recurso possibilitou ampliar o número de pessoas e comunidades envolvidas no trabalho de beneficiamento e comercialização.


Dona Ana Lice. Foto de William França

Domingas Cardoso. Foto de William França
Agora vamos pular para 2004, quando, finalmente, a Coopercuc foi fundada. Desde a sua formação as mulheres têm participação ativa na cooperativa: dos 44 cooperados, 26 eram mulheres. Hoje em dia elas equivalem a mais de 70% das pessoas cooperadas.
O papel da mulher no meio rural do Nordeste era restrito à cozinha, ao cuidado dos filhos e à busca por água. O trabalho da cooperativa ajudou a mudar essa realidade, promovendo maior participação política e garantindo uma melhor alimentação para a família.
“São elas as pensantes. São elas que tomam as iniciativas. São elas as corajosas. Elas realmente que abraçaram todo o processo e disseram “é por aqui que vamos trilhar”. Sem elas, não existiria a Coopercuc”, Jussara comenta emocionada.
O pertencimento e o protagonismo feminino são passados de geração em geração. Segundo Jussara, até hoje, a primeira cooperada, dona Judite, com quase 90 anos, continua participando efetivamente das reuniões e assembleias e com muito orgulho em pertencer.
De Uauá para o mundo
Depois de sua fundação, a cooperativa cresceu com o impulso do mercado público, sendo contemplada por políticas do governo do estado da Bahia e de âmbito federal, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que compra alimentos da agricultura familiar para serem distribuídos entre pessoas em situação de insegurança alimentar, e para escolas públicas.
O programa, além de fortalecer a produção de alimentos da agricultura familiar, impulsionou a expansão do mercado internacional da cooperativa. Os produtores começaram a expor os produtos em feiras, uma delas a Feira Nacional de Agricultura Familiar, em Brasília. Foi lá que o Slow Food – movimento criado pela Itália em oposição ao Fast Food – conheceu as maravilhas e as potências dos produtos do sertão e resolveram iniciar um projeto de valorização das comunidades da região.
Os produtores ganharam, como incentivo inicial do Slow Food, um financiamento de 13 mil euros investidos para a construção de 13 pequenas unidades de beneficiamento (pequenas estruturas construídas para as famílias poderem trabalhar), situadas em 13 comunidades rurais dos três municípios.
Em 2005, graças à visibilidade garantida pelo Slow Food, a Coopercuc começa a exportar e vender os doces para França, Itália e Áustria. “Vivíamos momentos muito difíceis e fazer o nosso produto chegar na mesa dos franceses era um momento de muito encantamento para gente. Nem estrada tínhamos, trazíamos o contêiner de salvador, mais de 420 km para encher de mercadoria e levava de novo para Salvador”, conta Jussara.
Assim, a cooperativa começa a ganhar espaço no mercado nacional e internacional, “e aí é a história que a gente já conhece” conta Jussara. Hoje a Coopercuc trabalha com geleias, sucos e polpas, doces e compotas, cervejas, cachaças, licores entre tantos outros produtos.


“É como se fosse uma luz em nossas vidas”
Maria da Glória da Silva, de 57 anos, foi uma dessas mulheres que viu nascer de perto a cooperativa. Filha de agricultores e moradora da comunidade tradicional de Fundo de Pasto de Caladinho, em Curaçá, o status do perfil da cooperada no aplicativo de mensagens é “Amo meu trabalho, é a minha vida”.
Quando questionada sobre a época que começou na Coopercuc, Maria da Glória nem se lembra. “Comecei a fazer um curso de lavradora enviada pela freira lá nos anos 90. Desde então estou envolvida em todas as atividades. Comecei fazendo doce de umbu para vender na feira. Era muito bom os momentos de organização, a gente se reunia, dava ânimo fazer parte daquele grupo. Hoje graças a Deus a gente tem essa cooperativa que ajuda muito os pequenos produtores, em todos os sentidos”, ressalta.
Atualmente Maria da Glória trabalha com a criação de cabra para produção de leite. “Gosto de trabalhar com cabra. Quando eu era criança, eu que cuidava. Porque meus pais iam para roça trabalhar. A gente prendia, soltava, dava comida. A gente foi criando esse amor. Me sinto muito bem, eu amo muito”.
A Coopercuc desenvolve junto às mulheres produtoras da Caprinocultura Leiteira um trabalho importantíssimo de autocuidado, acompanhamento social, técnico e veterinário, para melhorar cada vez mais esse sistema — que, até então, já está consolidado.
Pablo Garcia, analista da equipe de Investimento de Impacto da Sitawi, explica que os pequenos produtores, sozinhos, estariam vendendo os seus produtos para atravessadores. “Se não fosse a Coopercuc, eles estariam vendendo in natura, ganhando bem menos. Com o beneficiamento dos produtos, eles vendem com mais valor agregado. Isso permite trazer mais recursos para a região deles”, destaca.
O que são atravessadores?
O atravessador é a pessoa que coleta a produção do pequeno agricultor e a leva até o consumidor final das cidades. O problema é que, sem outra alternativa para comercializar a colheita, muitos produtores rurais cedem a colheita a condições abusivas e preços baixos impostos pelos atravessadores.
“A Coopercuc de tudo faz um pouco. Tem produtores que trabalham com leite, tem outros que trabalham com horta. Tem outros que trabalham com fruto. A gente se junta e produz aquilo que mais se identifica. A Coopercuc melhorou tudo. Eu não tenho palavras. É como se fosse uma luz em nossas vidas.”, Maria da Glória.
Expansão de horizontes
Um dos desafios pontuados por Jussara é a questão do capital de giro — uma reserva financeira que visa garantir a compra de insumos, materiais, pagamento de contas, etc. “Precisamos de recursos para iniciar todo o trabalho. Temos fornecedores espalhados por todo Brasil e precisamos desse capital de giro para poder fazer com que as embalagens, vidros, papelão cheguem aqui em Uauá”, ressalta.
Foi assim que a história da Sitawi se cruzou com a da Coopercuc. A cooperativa fez parte da 8ª Rodada de Investimentos na Plataforma de Empréstimo Coletivo da Sitawi, em 2020. A organização captou um pouco mais de R$150 mil e os recursos compuseram o capital de giro do negócio, o que permitiu mais desenvolvimento na estrutura produtiva na indústria.
“A Coopercuc traz um impacto enorme na região e é uma cooperativa muito robusta. O cooperativismo fortalece muito a agricultura familiar, eles sozinhos eles não conseguiriam ter essas produções”, comenta Pablo.
Formas de produção (vídeo: Barong)
AgroCaatinga
A Caatinga, único bioma exclusivamente brasileiro, foi tratada ao longo da história como uma questão a ser resolvida. No passado, a região CUC — Canudos, Uauá e Curaçá — foi penalizada pelo superpastoreio de animais e por desmatamento. Sendo assim, o clima semiárido foi ficando cada vez mais árido, devido ao aumento da temperatura ambiente, levando cada vez mais à escassez hídrica.
“A gente sofreu muito [choro emocionado], não tenho palavras para dizer. Eu vi muitas famílias passarem fome quando eu era criança. Tudo que eu desejo para a Coopercuc é tudo que desejo para meus filhos. A mãe só quer o melhor para os filhos e é isso que eu quero para a Coopercuc”, relata Maria da Glória.
Desde a sua fundação, a Coopercuc trabalha para o desenvolvimento das comunidades e das famílias, além de trabalhar a conscientização e a preservação do meio ambiente e da Caatinga em geral.
Um dos projetos criados pela organização para as famílias cooperadas é o AgroCaatinga, que consiste na implementação de sistemas agroflorestais nas propriedades dos cooperados. O projeto possibilita a recomposição do solo, da vegetação e, como resultado, o incremento da renda, uma vez que nestas áreas são produzidas algumas das frutas que são processadas na agroindústria da Coopercuc. Além disso, garante uma produção viável e geração de renda dentro das comunidades rurais para todos os gêneros, enfatizando o protagonismo juvenil e de mulheres.
“A Coopercuc não é só doce”
A cooperativa investe em inovação e, segundo Jussara, “são ousados e sempre buscam novos produtos”. Vai de produtos de beleza a cervejas artesanais.
Desde 2012, a L’Occitane (marca de cosméticos francesa) vem desenvolvendo uma cadeia de abastecimento sustentável para atender suas demandas de produção. A colaboração permite que insumos do mandacaru se transformem em uma variedade de produtos que compõem uma linha de creme para mãos. Além da linha para cabelos — Cabeleira Cacheada — com a semente do maracujá da Caatinga, tudo alinhado ao projeto AgroCaatinga.
Recentemente começaram a contar com a parceria da Ambev para produção e expansão da cerveja artesanal de umbu. Mas, para além da produção e expansão de mercado, a Coopercuc é responsável pelo empoderamento das mulheres e jovens.
“A Coopercuc não é só o doce. Ela é o trabalho com os jovens e faz com que eles se apropriem do que é deles. Promovemos estágio de jovens rurais para atraí-los para as atividades da Coopercuc. Eles são o futuro”.
Além disso, Jussara comenta que é necessário preparar mais mulheres para liderança e gestão da organização. Mesmo com o quadro de mais de 70% de mulheres, a cooperativa passou quatro mandatos sem uma liderança mulher. “Elas não se sentiam preparadas para comandar. Elas precisam se sentir donas disso tudo. Porque elas são”, comenta a diretora.
No quinto mandato conseguimos eleger uma mulher que comandou por dois anos. Precisamos pensar em legado e na gestão do futuro que é de todos nós.

As mulheres e o semiárido
A trajetória de uma das sócias fundadoras da Coopercuc também foi transformada pelas madres. Jussara Dantas é graduada em Geografia, especialista em educação ambiental, diplomada em gerenciamento sustentável pela Universidade de Luneburg, na Alemanha.
Jussara foi influenciada pela mãe, dona Joaninha, a iniciar sua caminhada nos movimentos sociais, através das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), da Pastoral da Juventude Rural e da associação da sua comunidade (Associação de Desenvolvimento Comunitário e Agropastoril dos Pequenos Produtores Rurais da Fazenda Caititús), a qual ainda é associada.

Filha de agricultora e mãe de dois meninos, Jussara ressalta a importância da educação e do conhecimento para a transformação do semiárido. Quando jovem, tinha duas oportunidades: sair para a cidade grande ou permanecer no campo. A decisão de ficar fez toda a diferença. Ela é o exemplo vivo para muitos jovens, que podem viver e permanecer no sertão traçando sua vida, fazendo história e transformando as relações entre o campo e trabalho.
Foi e é necessário aprender a conviver com o Semiárido, que se transforma, cria e reinventa formas de convivência entre seres humanos e a natureza, tanto em suas relações sociais quanto produtivas.
A Coopercuc, com uma variedade de experiências, saberes e práticas vivenciadas e aplicadas, construiu um projeto que transforma a vida das pessoas, sobretudo das mulheres. Afinal, elas são as protagonistas desta história.
